João Miguel Tavares

Ainda há dez dias, no primeiro domingo do advento, falávamos do Deus que chega como um ladrão.

Esse Deus inesperado está no Evangelho de Mateus (Mt 24, 43), numa das cartas de Pedro (2 Pe 3, 10), numa das cartas de Paulo (1 Ts 5, 2) – “O Senhor virá como ladrão de noite” – e também no Apocalipse (Ap 16, 15), numa frase habitualmente atribuída a Jesus – “Eis que chego como ladrão.”

Esta era com certeza uma imagem muito viva nas primeiras comunidades cristãs, que aguardavam a segunda vinda de Jesus, mas que é estranha aos olhos de hoje – não seria possível encontrar melhor imagem para ilustrar uma chegada inesperada do que comparar Deus a um ladrão?

A verdade é que os Evangelhos estão cheios de comparações surpreendentes.

Em Lucas (Lc 16, 1-8), o Senhor elogia o administrador desonesto “por ter agido com esperteza”. Em Mateus (Mt 10, 16) somos aconselhados a ser “perspicazes como as serpentes”.

Esta estranha popularidade evangélica quanto aos métodos de ladrões, aldrabões e répteis é desconcertante.

O que está em causa, como é óbvio, não é uma adesão à substância do mal.

Mas o simples reconhecimento do engenho de algumas das suas estratégias; a mera sugestão de que as ovelhas têm alguma coisa a aprender com os lobos e as pombas com as serpentes, tem a grande vantagem de empurrar os cristãos para dentro do mundo.

O cristianismo não se impôs como uma religião de ascetas – embora também os tenha tido, e tem –, mas como uma religião da vida comum e das suas nódoas; uma religião que se ocupa dos que têm os pés enfiados na lama – ou seja, de todos nós.

Não é prudente esperar sentado pela segunda vinda de Jesus.

Ou, para citar a sabedoria popular, “fia-te na Virgem e não corras”.

É preciso correr, correr muito, correr no meio do mundo, e foi isso que os padres dehonianos – ainda que com muita fé na Virgem, certamente – fizeram desde a segunda metade da década de 40 do século XX, quando, vindos de Itália, chegaram a Portugal, há 75 anos.

—//—

O livro que hoje aqui nos traz tem como pós-título “História de uma congregação empreendedora em Portugal” e aquilo que mais surpreende é mesmo aquele adjetivo – “empreendedora”.

Imagino que ela possa ter sido alvo de algum debate interno – parece fora do seu contexto.

O empreendedorismo – a força do espírito empreendedor – costuma encher a boca dos “business angels” e dos fanáticos dos workshops motivacionais que vemos no YouTube em vídeos irritantes.

Cheira a dinheiro, a muita ambição e a coisas demasiado deste mundo.

Mas se o mundo foi criado por Deus, talvez seja prudente não lhe torcer o nariz em demasia.

Portanto, permitam-me vir defender aqui a honra do empreendedorismo, e da escolha dessa palavra para pós-título do livro, ainda que possa não ser a expressão favorita de alguns dos membros da “congregação empreendedora”.

Aquilo que mais me impressionou na leitura desta história da presença dos Sacerdotes do Coração de Jesus em Portugal foi efetivamente a forma como conseguiram, em apenas 20 anos, erguer uma nova Província a partir do nada.

Desde que os jovens padres italianos Angelo Colombo e Gastão Canova chegaram a Lisboa nos últimos dias de 1946, até ser oficialmente criada a Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus, nos últimos dias de 1966, passaram precisamente duas décadas. Mas aquilo que foi feito nesses 20 anos, e sobretudo aquilo que foi feito pelos padres Colombo e Canova ao longo da década de 50, é absolutamente extraordinário.

A história dava um filme. Dois jovens padres italianos chegam ao Funchal no barco Carvalho Araújo, em Janeiro de 1947, com uma mão à frente e outra atrás. Não falam Português. Pertencem a uma congregação ainda recente, desconhecida dos madeirenses. Buscam apoios entre a Igreja local. Integram-se numa escola de Artes e Ofícios. Aprendem a língua portuguesa ao lado das crianças na escola primária.

Mais tarde, arrendam a Chácara Brasil, futuro Colégio Missionário Sagrado Coração. Apostam na recuperação de lugares desabitados. Iniciam a formação e a missionação sempre no meio de grande pobreza, com 12 “apostolinhos”. Confrontam-se com as eternas dificuldades burocráticas para a instalação em Portugal de uma nova congregação e de um colégio missionário.

Mas à medida que as páginas e os dias vão passando, acumulam-se as pequenas vitórias, as dificuldades vão sendo superadas, uma após outra, e é realmente impressionante o crescimento dos dehonianos em Portugal no início dos anos 50.

Há sempre planos para mais uma abertura, para mais um colégio, para mais uma presença.

Em Lisboa, pressionam para assumir a reitoria da histórica Igreja de Nossa Senhora do Loreto. E depois de conquistada a Madeira, avançam para a Casa das Alpenduradas, em Coimbra. Depois para a Casa do Sagrado Coração, em Aveiro. Depois para o Porto.

Arrendam aqui, compram ali, constroem acolá, sempre com pouca gente, sempre com pouquíssimo dinheiro, mas com uma energia, uma determinação e uma agilidade admiráveis.

Se isto não é empreendedorismo, não sei o que é empreendedorismo.

A 19 de Dezembro de 1959 é ordenado o primeiro dehoniano português. E depois a congregação expande-se ainda mais, para o Algarve, para os Açores, para as missões em África: Moçambique, Madagáscar, Angola.

Nunca são muitos – o número de dehonianos em Portugal está hoje abaixo dos 80 –, mas fazem imenso.

Na conclusão do livro, sugere-se mesmo que a congregação pode ser um “estudo de caso” no “âmbito das estratégias de gestão e de empreendedorismo” (p. 474). E, de facto, fazer tanto com tão pouco é digno de uma verdadeira start-up, que simplesmente prefere chegar a Deus em vez de chegar a unicórnio.

E é aqui que voltamos ao ladrão.

O benemérito inglês Julian Leacock, que nos anos 50 ajudou os dehonianos no Funchal e depois lhes entregou a antiga creche da Fábrica Graham no Porto, chamava-lhes uma coisa extraordinária: os “bandidos de Deus”.

A propósito da grande relação de amizade que unia Leacock ao padre e superior regional João Batista Carrara, está escrito neste livro, a páginas 288:

“Leacock chamava ao padre italiano ‘o bandido de Deus’, por conseguir angariar tantos fundos para os desígnios da Providência.”

E quando Leacock deu a notícia de que a antiga creche ficaria mesmo à disposição dos dehonianos (foi aí que instalaram provisoriamente o Seminário Missionário Padre Dehon), ele escreveu num documento improvisado: “O bandido de Deus, Pe. João Batista Carrara, vai tomar conta e ser proprietário da creche da Fábrica Graham, no Porto.”

No campeonato das metáforas surpreendentes, “bandidos de Deus” pede meças em atrevimento à comparação de Nosso Senhor com o ladrão que chega de noite.

O uso de “bandido” naquele contexto pressupõe duas coisas:

Em primeiro lugar, que o padre Carrara era um homem pouco susceptível e com sentido de humor (duas enormes qualidades).

Em segundo lugar, que era um pragmático por natureza, que pedia, insistia, azucrinava e metia as mãos na massa – ou seja, um empreendedor.

—//—

Não fica claro para mim, mesmo após ler as 600 páginas deste livro, qual é o carisma particular e diferenciador dos dehonianos – o que é exactamente esse coração de Jesus, em termos teóricos.

No livro fala-se em espiritualidade “quente”, com coração (cf. p. 470), e está muito bem, mas é demasiado abstracto.

Aquilo que, em termos práticos, atravessa a história dos dehonianos é uma outra coisa, também referida no livro: “Uma espiritualidade que convida a sair das sacristias” (p. 407). Isso eu percebo – e aprecio.

“Coração” soa-me um bocadinho delicodoce para gente com calos nas mãos e bolhas nos pés.

Embora menos poético, “scj” talvez pudesse significar Sacerdotes que Carregam como Jesus. (Deixo aqui a ideia, caso estejam interessados num rebranding.)

Tem uma certa fogosidade associada, e encaixa melhor em quem se mete ao caminho, desenrascado-se como pode e ajudando onde é preciso – a tal “força da disponibilidade” que dá título a este livro, e que me parece ser um bom resumo daquilo que tem sido o trabalho dos dehonianos.

Os empreendedores constroem coisas.

Os bandidos formam grupos coesos para aventuras arriscadas.

Os dehonianos aventuram-se e arriscam há 75 anos em Portugal na construção de comunidades.

É o tipo de fé que aprecio particularmente – não aquela que reclama, mas aquela que faz.

Não a fé que se limita a pedir ajoelhado, mas a fé que nos dá força para servir no mundo e na lama.

Porque se a fé e a graça podem salvar vidas no outro mundo, uma comunidade forte salva vidas já neste.

O Deus cristão não é um Deus cutchi-cutchi, fofinho e sem arestas. É um Deus complicado, que por vezes nos assalta e nos assusta – como um bandido.

As palavras de Jesus ajudam-nos a lidar com o sofrimento, mas não contêm a fórmula para a sua extinção.

Oferecem luzes bruxuleantes que vão iluminando o nosso caminho na escuridão.

Em cima dessas luzes construímos os Evangelhos; em cima dos Evangelhos construímos a religião do amor frágil, do Deus que os homens podem matar; e à volta dessa religião construímos comunidades de “erguidos e de erguedores”, de “cuidadores feridos”, como reza um padre que eu conheço.

Uma boa congregação faz precisamente isso: constrói comunidades, e constrói-as de forma distinta de outras congregações.

Cada fundador de uma nova ordem diz o mesmo que a senhora gulosa para o Ambrósio: “apetece-me algo”. Algo que não tem naquele momento. É um ser inquieto. É alguém que sente que não tem à sua disposição, no vasto catálogo da Igreja, uma comunidade que reflicta a forma como vê Deus no mundo – e por isso cria uma nova comunidade com um novo olhar.

A Igreja Católica tem muitos defeitos, mas uma enorme qualidade: permite uma vastíssima diversidade dentro de si. Em linguagem empreendedora, a Igreja está aberta à iniciativa privada no domínio espiritual, como o padre Dehon pôde comprovar.

Essa diversidade é uma riqueza.

—//—

Infelizmente, não conheço os dehonianos como um todo, em abstracto.

Mas conheço um dehoniano em particular.

Gosto de padres e sempre gostei de padres – como gosto de alpinistas que conquistam montanhas ou corredores de longas distâncias.

É gente que se atira com coragem a experiências radicais.

Há vários padres que foram muito importantes na minha vida, e continuam a ser.

O facto de os padres serem hoje vistos por parte do mundo como senhores excêntricos ou aborrecidos, significa apenas que a Igreja tem muito a melhorar no capítulo das relações públicas, como se tem comprovado ultimamente.

Se a árvore se conhece pelos seus frutos, o fruto que melhor conheço da árvore dehoniana é o padre António Pedro Monteiro.

É um fruto carnudo, no sentido literal e metafórico do termo, e está a construir – estamos a construir – uma pequena comunidade em redor da capela do Hospital de Santa Marta, onde me sinto totalmente em casa.

Ali tem vindo a crescer um reflexo de Deus que me inclui, que não deixa nada de mim à porta, e é a primeira vez que isso me acontece em quatro décadas de vida cristã atribulada. Essa é uma dívida que tenho para com um dehoniano em particular, e, nessa medida, também é uma dívida que tenho para com os dehonianos em geral.

Há uma linha que dando muitas voltas por muitas décadas e por muitos lugares une Leão Dehon, ainda no século XIX, aos padres Angelo Colombo e Gastão Canova, que desembarcaram no Funchal em 1947; que depois une os padres Colombo e Canova a outros padres italianos que seguiram os seus passos; que depois une esses padres italianos a outros padres portugueses por eles formados; que depois une esses padres portugueses a um miúdo de Vizela que entra para o seminário aos 12 anos; que depois une esse miúdo, já graúdo, a um amigo meu muito lá de casa; e depois a mim, à minha mulher, aos nossos filhos, oferecendo-nos uma interpretação dos textos, do espaço e dos gestos que compõem uma arquitectura espiritual à qual posso, podemos, chamar casa – a mais importante das casas, segundo nos é dito, porque fundada não na areia, mas na rocha.

E é ainda essa mesma linha, após as suas voltas e reviravoltas, por décadas e em breve séculos, enredando-se por centenas de lugares e enredando milhares de pessoas; é essa linha que vai cerzindo um tecido comum, uma tapeçaria de encontros que sustenta o nosso peso, um tapete que ajuda a limpar a nossa lama – e, no fim do dia, é também ela a rede onde se pescam os homens.

São misteriosos os caminhos que nos trazem até aqui – e esse é o mais belo milagre do fazedor: abrir as veredas por onde os outros circulam, criando espaços de encontro.

Foi assim que aqui chegámos.

São 75 – na verdade, quase 76 – anos de empreendedorismo dehoniano.

De aberturas de veredas.

De criação de espaços de encontro.

Setenta e cinco anos a construir comunidades e a serem bandidos de Deus, porque é da lama do mundo que se fazem os vasos de barro onde guardamos o tesouro.

Muito obrigado – e muitos parabéns.

 

João Miguel Tavares

Lisboa, 3 a 6 de Dezembro de 2022